Pode ser lida ouvindo Rotina do Roberto Carlos
Quando era criança todo dia meu pai me comprava um Kinder Ovo. Nem era fã do chocolate, meu interesse estava no brinquedo. Chegou uma época que eu tinha mais de cem diferentes. Eram o meu xodó, guardava todos em uma caixa de sapatos.
O pai viu aquilo e logo fez um estojo de madeira. Foi daí que passei a tomar mais cuidado. Assim como meu velho teve ao fazer a caixa. Não emprestava pra ninguém, com medo que estragasse ou perdesse.
Me lembro de ser chamado de egoísta por meus irmãos várias vezes.
Mas não ligava, sempre que olhava pro pai ele piscava pra mim, orgulhoso com meu zelo. Acho que aquela coleção era tão dele quanto minha. Ele sempre foi assim, me presenteava com tudo que quis ter quando criança e não pôde. E eu, como filho caçula, adorava ser paparicado.
Por vezes vários de seus amigos iam lá em casa bater papo e ele mostrava orgulho o estojo de madeira envernizada que havia feito. Cheio de pompa, ostentava seu trabalho. O senhor Joaquim, sempre foi desses, onde chegava roubava a cena. Era o centro das atenções com suas piadas e sua voz grossa.
Foi muito difícil com o passar dos anos vê-lo perder a voz para um câncer de garganta, doía demais o silencio da casa. Sua voz alta trocada pelos rabiscos nos papeis espalhados pelos cantos.
A caneta era sua língua, o papel sua dicção.
Isso não impediu que nossos diálogos na sacada acontecessem. As lembranças das pescarias, das idas até o mercadão e do dia que me ensinou a dirigir. Todas elas atravessavam sua letra em folhas de caderno.
Mas a ordem natural das coisas, tende a machucar demais, aprendi isso da pior forma possível.
Ele bem dizia que o cigarro cobrou seu preço. Pena que foi tão alto! Pra ele e pra nós.
Depois de tanto lutar contra essa maldita doença ele acabou nos deixando e como disse em outra crônica a minha ficha ainda não caiu. O silêncio não é capaz de apagar sua presença. Nada será, tem muita história tatuada no coração.
E isso é pra sempre.
Contudo ainda guardo os dois comigo, o estojo de madeira e a saudade.
Dentre tantas coisas que ele me ensinou, achou que faltou me ensinar como lidar com o luto, com a sua ausência. Mas como ele poderia? Ele que do seu jeito “rústico” sempre se fez tão presente.
Por vezes penso que todas as orações que fiz querendo que ele ficasse mais tempo comigo neste plano, eram só desejos egoístas de alguém que não estava pronto pra dizer adeus.
Nunca estarei, talvez por isso que as vezes me pego fazendo algo que jamais imaginei:
Ir até o cemitério conversar com sua lápide na esperança de que de algum lugar ele me ouça. Fico ali olhando pra seu nome gravado na pedra, ouvindo sua música preferida repetidas vezes. Rotina, do Roberto Carlos.
E assim mesmo longe ele me dá um último ensinamento, de que preciso aprender a caminhar só agora, seguir minha rotina.
Mas sempre que olho pro estojo agora vazio eu me lembro de todas as vezes que me chamaram de egoísta. De todas as vezes que meus irmãos fecharam a cara e de que ele piscou pra mim.
Acho que já aceitei, sou egoísta mesmo. Preciso aprender a conviver com esse vazio, a suportar a sua ausência.
Mas minha saudade... Ah! Essa é minha e ninguém leva.
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