Todo dia é o dia mais quente do ano, segundo a moça do jornal. Mas hoje realmente o senhor Sol não está de brincadeira.
Minha blusa empapada na gola, uma pizza tamanho família debaixo do braço e parece que alguém esticou a calçada do prédio. Vejo a portaria, mas nunca chega.
Pra piorar, esse barulho que ninguém entende nada. Um tuntz, tuntz, tuntz infernal. Nunca vou entender essa ideia de colocar um som no carro que serviria pra transmitir um show no Maracanã. Olho pra rua e vejo uma pick-up rebaixada. Na verdade, nem sei se ela é mesmo rebaixada ou é o peso de todas essas caixas que parecem querer me deixar surdo. Acho até piada ela ser amarela. Seria o carro perfeito pra vender pamonha.
Não acredito que o indivíduo deu seta! Ele vai entrar... Não, não pode ser! O energúmeno mora no meu prédio? Apresso o passo querendo saber quem é o dono da saveiro pamonheira. Quando o dono sai, fico olhando sem acreditar. Uma loira tatuada, não sei se olho pra ela ou pras tattoos. A rosa atrás da orelha eu achei legal, mas a cobra parecendo apertar um coração eu achei bem esquisita. Um cheiro suave exalando, provavelmente, algum perfume caro. E eu aqui com as sacolas de cenoura e alface na mão. Com essa minha cara de nabo acho que já tenho a salada completa.
Esperei ela entrar e fui ver qual era a garagem. Como as vagas são todas padronizadas eu já saberia qual é o seu apartamento.
Apartamento 5 bloco 8.
É engraçado que agora, toda vez que passo em frente à vaga, vejo aquele carro. Já passei aqui tantas vezes e nunca tinha visto o pamonhão. Estava até observando bem, o carro é bacana. A cor, o insulfilm e o rosto da Minnie preso na ponta da antena deu um toque feminino.
Semana passada até fui à reunião de condomínio, só pra ver se via ela. Eita, se arrependimento matasse... Além dela não ir, tive que aguentar o síndico falar por duas horas sobre o novo rateio do gás e o problema das baratas. Só tinham umas cinco pessoas. Todos uns chatos que só queriam reclamar de tudo. Principalmente seu Aristides que toda hora levantava a mão e ninguém entendia nada por conta daquela voz de Derby.
Acho que estou ficando besta. Dando muita importância pra essa história. Mas e se eu fosse até o apartamento dela? Inventasse alguma desculpa, sobre o funcionamento da antena comunitária ou qualquer outro assunto. Se fosse no século passado, bateria na porta pra pedir açúcar emprestado, mas hoje essa desculpa, além de clichê, não cola mais. O prédio tem a lojinha própria.
Inclusive a dona Maura reclamou na reunião, se levantou interrompendo o síndico e falou que é um desrespeito com os moradores, que os produtos estão sempre vencidos e ninguém toma uma atitude. Nem prestei atenção, quando mais ela esbravejava, mais o cheiro de alfazema tomava conta do ambiente.
E não é que acabei criando coragem? Nem acreditei, mas agora o dedo já apertou a campainha, não tem mais volta. Toquei e ninguém saiu. Achei melhor não tocar novamente. Respirei aliviado, melhor deixar isso pra lá.
— O que é melhor deixar pra lá? Perguntou ela.
“Droga, pensei em voz alta. E agora?”
— Oi, tudo bem? Sou o morador e tem uns dois dias que não tenho sinal da antena de tevê. Resolvi perguntar se você está tendo esse problema também.
— Mas você mora neste bloco? Nunca te vi aqui.
“Acho que não colou, o que eu faço?”
— Eu moro no da frente, mas bati em umas duas portas e não saiu ninguém.
Ela começou a olhar pro vão da escada, franziu a testa e começou a entrelaçar os dedos rapidamente. Será se me achou algum tarado ao algo assim? Eu pensaria!
Se encaminhou até a porta e pareceu nem se importar com o que eu havia dito. Como se tivesse lembrado que deixou leite no fogo ou algo assim.
— Não assisto a canais de tevê, apenas Netflix e Youtube, tente ver com algum outro vizinho, agora se me der licença preciso entrar.
“Não vim até aqui pra voltar sem tentar nada.”
— Escuta, a verdade é que vim aqui porque tenho te observado há alguns dias e queria saber se...
— Então foi você que me seguiu na semana passada? Disse ela com um sorriso se formando em seus lábios.
— Não exatamente, é que...
— Não tem problema. Eu gostei. O que acha de passar aqui amanhã de manhã?
Disse e já entrou no apartamento.
Fiquei igual um idiota olhando pra aquela porta e pensando se talvez ela tivesse do outro lado me encarando pelo olho mágico.
No outro dia claro que fui. Nem era meu dia de home office, mas troquei com o Marcão. Não é todo dia que a vizinha te dá mole assim.
Toquei a campainha e nada, de novo e já comecei a sentir uma gota de suor descer pelas costas, trazendo consigo o arrependimento.
Foi quando a porta se abriu.
— Oi, você que é o vizinho que gostou do carro?
Era um rapaz alto, musculoso e com cara de poucos amigos. Ele tinha a mesma tatuagem da cobra espremedora de corações. Será se é alguma tattoo de casal?
— A Brenda me disse que você está interessado. Vamos lá que vou te mostrar. Está filé e não se preocupe com a Minnie no teto, eu vou tirar. Falei pra não colocar, mas ela usa o carro mais do que eu e queria deixar com a cara dela.
Acabei comprando, não tinha como sair dessa. Vão ser três anos pagando essa merda. Trinta e seis malditas prestações.
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